Síntese: Sobre as correntes filosóficas dentro do Movimento Feminista — Anuradha Gandhy
Introdução
À luz do debate realizado na sessão de luta sobre a questão feminina, cuja obra guia foi “Sobre as correntes filosóficas dentro do Movimento Feminista”, da autora e militante marxista Anuradha Gandhy, ficou demonstrada a necessidade de sintetizar as conclusões que a Associação Democrática Brasileira chegou nesta ocasião e quais reivindica como as que se mostraram mais corretas, i.e., expressivas do real — portanto científicas — sobre o tema.
Partindo da abordagem escolhida pela supracitada escritora, na qual são expostas as diferentes e principais correntes do Movimento Feminista, bem como suas respectivas bases filosóficas, é possível vislumbrar o caráter classista burguês inscrito no feminismo, a despeito de suas tendências. Isto porque, na sociedade de classes em geral e, em particular, no capitalismo, toda e qualquer ideia e movimento organizado está umbilicalmente atrelado com uma classe e seus interesses. Desta forma, com o feminismo e movimento feminista não seria diferente — seja ele o liberal, o radical, o interseccional, ou ainda, o que se diz marxista ou socialista — , visto que carrega consigo a expressão e o caráter da classe que pertence, a citar: a burguesa. Desse modo, como afirma o documento “Marxismo, Mariátegui e O Movimento Feminino”, desenvolvido pelo Partido Comunista do Peru, atua como elemento que divide e trava a luta popular.
Urge, por conseguinte, destrinchar as razões pelas quais é importante traçar essa linha de classe que separa o feminismo e suas correntes — como movimento histórico e movimento social organizado — e a questão feminina, pauta a ser reivindicada no embate da luta de classes pelas mulheres trabalhadoras.
O Feminismo Liberal e o Feminismo Radical
Duas etapas principais separam os movimentos de mulheres no assim chamado Ocidente.
O primeiro datado de meados do século XIX até metade do século XX.
O segundo surgido nos anos 60.
O primeiro surgiu, principalmente, objetivando a luta por direitos civis e políticos, em especial o sufrágio feminino, indo na onda das diversas lutas do campo democrático comuns a este período. Neste contexto acontecia também o aumento do movimento operário, porém, como pontua Anuradha, “A maior parte das líderes sufragistas não demonstraram interesse na exploração dos trabalhadores e não apoiaram o movimento.”
O Feminismo Liberal tem, então, seu surgimento atrelado a este cenário, buscando, de certa forma, suprir a lacuna deixada pelos filósofos políticos liberais em relação à opressão feminina e aos direitos das mulheres. De forma similar aos direitos burgueses em geral, este movimento incipiente de mulheres se mostrava como um avanço em relação aos velhos costumes e ideais do período anterior, do regime feudal. Assim, como a democracia burguesa, seu progressismo avançou até o momento em que os direitos de sua classe se consolidaram.
A partir deste ponto, onde o avanço de direitos atravessa os limites de classe, e, logo, coloca a própria existência da burguesia enquanto classe dominante em cheque, a mesma passa a expressar o seu caráter reacionário — indissociável da condição de classe dominante exploradora.
O segundo momento em que o movimento de mulheres mostra sua força é a partir dos anos 60 do século XX, seguindo a efervescência de movimentos sociais do período. O que principalmente difere este momento do contexto do Feminismo Liberal é sua construção com base teórica na “opressão patriarcal”, além da luta voltada à busca de uma reformulação das instituições sociais neste, visando combater a opressão feminina.
O feminismo deste período passa a ser chamado de Feminismo Radical. Este movimento de mulheres, ambientado principalmente no seio acadêmico, tenta dialogar com o marxismo — ou ao menos como concebem o marxismo — , mas posteriormente, abandona por completo a teoria proletária em detrimento de uma teorização própria acerca do patriarcado e da relação entre os sexos/gêneros, não necessariamente atrelado à opressão de classes e ao capitalismo.
Nos dias atuais, o Feminismo Radical é completamente desvinculado à luta das mulheres trabalhadoras, e, tal como o feminismo liberal, não propõe estratégia prática e científica para as reivindicações das massas femininas, uma vez que desde sua gênese esteve delas afastado. Tamanho é este afastamento que, muitas vezes, essa corrente é associada à bandeiras reacionárias, acabando por entravar a luta de outras minorias políticas, como a de pessoas trans. Isso pode ser explicado pela conceituação de gênero do feminismo radical, confusa com a de sexo biológico e que, dessa forma, essencializa (aos modos metafísicos próprios da ideologia burguesa) a opressão sofrida pelas mulheres, e dá destaque a uma socialização atribuída aos homens que, aparentemente, amaldiçoa o sexo masculino como o Pecado Original bíblico.
Nesta concepção é, de certa forma, atribuído um caráter de contradição antagônica na relação entre os sexos/gêneros. Tal ideia é estranha ao entendimento materialista histórico-dialético da realidade, uma vez que se constrói a partir de vulgaridades teóricas, como o uso de formalismos (e supostas verdades eternas) biológicos, almejando explicar questões de cunho social. Estes pontos estão diretamente relacionados com a sua total ineficiência como teoria de atendimento e avanço na resolução das questões e demandas femininas.
Afinal de contas, onde começa a metafísica sobre etnias, sexos, etc., começa também o apelo vulgar e raso ao suposto essencialismo da biologia — nossas feministas radicais, no afã de emancipar mulheres mediante toneladas de papel, não passam de modernas frenologistas das genitálias.
O Feminismo Socialista/Marxista
O encontro das feministas radicais com os ideais marxistas, motivado pelo movimento espontâneo de libertação da mulher nos anos 60, resultou na corrente de pensamento denominada feminismo socialista.
Muito influenciada pela nova esquerda estadunidense, revisionista e trotskista, junto de sua análise da questão feminina, essa vertente concentrou seus esforços em conciliar a teoria de Marx à feminista — partindo, no entanto, do pressuposto que o método marxista era incapaz de compreender a questão feminina em sua completude (!).
Tal concepção, mesmo refletindo a limitação do entendimento das intelectuais desse nicho acerca da teoria proletária, também não oferece caráter revolucionário em termos de estratégia. Entretanto, angaria defensores, ditos marxistas, até os dias atuais. Assim, essa aberração ideológica, fruto de desvios burgueses e de um ecletismo tacanho, deve ser combatida no seio de qualquer organização revolucionária séria.
Para fins práticos, não detalharemos as diferentes visões dentro da vertente, tendo em vista que Gandhy, em sua obra, esmiuça a questão já referenciada. Contudo, esclarecemos brevemente seus principais pontos de pensamento, ou melhor, equívocos.
Sob a influência do feminismo, as feministas socialistas negaram a teoria de Engels sobre a origem da propriedade privada ser relativa ao surgimento da opressão feminina.
Diante dessa Esfinge parida pelos próprios horizontes estreitos, parte das intelectuais puseram seus esforços sobre o patriarcado e, outra parte, sobre a divisão sexual do trabalho para explicar a real causa da subjugação da mulher.
Ambos falharam em suas análises.
A parte defensora do patriarcado como força motriz da opressão, por atribuir a esta estrutura o caráter de universal e inerente ao sexo masculino (nosso Adão Pecador aparece novamente). Além de a-histórica, tal tentativa de explicação atribui características permanentes ao ser humano. Sendo assim, conflitante com a análise materialista dialética, que determina o ser como fruto de sua existência social apenas, sem recorrer às ideias metafísicas para compreendê-lo.
Enquanto isso, o restante das intelectuais falharam em entender que, apesar de aparecer desde a aurora da humanidade, a divisão sexual do trabalho não significou desigualdade entre homens e mulheres. Pelo contrário, as mulheres desempenhavam papel na agricultura e, isso junto do fato de possuírem o direito materno, colocava-as como elementos de suma importância em seus grupos.
Mencionamos ainda outros erros que residem sobre a teoria do feminismo socialista mesmo quando este discute a situação da mulher no capitalismo, tais como: a tendência de universalizar a experiência do capitalismo avançado e ignorar os países onde o feudalismo perdurou por mais tempo e a opressão feminina se apresentou mais gravemente; a desconsideração do aspecto de classe em suas formulações, considerando que a experiência da mulher proletária poderia ser a mesma da mulher burguesa; além do esvaziamento da noção de infra e superestrutura em suas análises que, como Juliet Mitchell faz, compreende capitalismo apenas como modelo econômico e o patriarcado apenas como ideológico.
Tendo Marx já ensinado que a ideologia de uma sociedade é a ideologia de sua classe dominante, e que é incapaz de sobreviver como ideologia sem ter base material, tal afirmação de Mitchell é nada mais que antimarxista.
As problemáticas não se restringiram apenas ao campo teórico, visto que, no estratégico-prático, se contentaram com o reformismo das práticas economicistas.
Gandhy aponta essas ferramentas como úteis para organizar pessoas em primeiro momento, todavia, reforça que não são suficientes para alcançar a derrubada de um sistema opressivo por inteiro.
Ressalta-se aqui uma contradição, dado que não acreditavam na possibilidade da emancipação feminina sob o capitalismo, mas mesmo assim não investiram na elaboração de uma estratégia realmente revolucionária para o alcance de um sistema que o substituísse.
Isto é reflexo da própria limitação teórica desse movimento, que concebia as mulheres como os únicos agentes da revolução, elementos antagônicos aos homens e detentoras de interesses divergentes aos da classe operária em geral. Na prática, essa brilhante estratégia passa à negação, por parte de muitas feministas socialistas, da necessidade de organização proletária em um partido de vanguarda, elemento que se mostrou, historicamente, fundamental para o alcance do socialismo.
Isto posto, afirma-se a incompatibilidade da metodologia feminista com a do marxismo. Em suas tentativas de casar ambas teorias, as feministas marxistas revisam os conceitos de Marx, retirando deles seu caráter materialista dialético, revolucionário, substituindo por explicações escoradas em um idealismo débil, com o único objetivo de comprovar conclusões previamente moldadas sobre uma sociedade dividida a partir do gênero.
Tal fato decorre tanto de um entendimento pobre do método de Marx e Engels, quanto da influência da esquerda revisionista, cuja concepção da realidade social não se baseia na verdade concreta, entretanto em idealizações pequeno burguesas. Dessa forma, apesar de se denominar como tal, as correntes nessa seção comentadas nada possuem de marxista.
Anarco e Ecofeminismo e a Influência do Pós Modernismo
Escolhemos não aprofundar em específico nessas vertentes, uma vez que a própria Gandhy passou por estas de forma mais breve. Entendemos que isso faz sentido por alguns motivos.
O primeiro é que, dentro da própria doutrina marxista já existe vasto material que possibilite a crítica a estas correntes de pensamento (anarquismo, revisionismo de Lowy, as correntes filosóficas que usam a categoria de pós-modernidade etc.) que, em suas “adaptações” feministas acabam sendo um apêndice para tratar da questão feminina.
No caso do anarcafeminismo, em particular, há também forte influência do feminismo radical, tanto que, em muitos casos, é possível confundir um com o outro — isto é, nos contextos onde os movimentos anarquistas desempenharam grande influência sobre as autoras do feminismo radical, e o próprio feminismo radical, por sua vez, influenciou o anarcafeminismo.
Sendo assim, grande parte das críticas voltadas ao RadFem se aplicam a AnarcaFem, no que diz respeito à teoria marxista. Nos dois casos se encontram concepções idealistas que rejeitam a organização das mulheres em organizações democráticas e revolucionárias, isto por rejeitarem qualquer forma de organização hierarquizada — que entendem por “autoritárias”.
Portanto, entendemos que, em comum, essas vertentes partem dos idealismos já presentes nas correntes de pensamentos das quais derivam, não fornecendo, a exemplo das outras debatidas anteriormente, meios práticos e táticos que sirvam à conquista das demandas mais urgentes das mulheres proletárias.
Conclusão
O contexto social e econômico em que o mundo adentrou após a Revolução Industrial, ou seja, a consolidação do capitalismo como sistema econômico vigente — de início nos países industrialmente avançados da Europa e posteriormente imposto ao mundo todo — , criou o proletariado como classe em-si e para-si e incorporou, devido às próprias necessidades de reprodução de capitais, as mulheres no exercício do trabalho social industrial.
No capitalismo, esse trabalho social é dado na forma de trabalho assalariado que, com o advento da técnica e da indústria, colocou os gêneros e sexos como iguais — se podes gerar mais-valia, pouco importa o que tens debaixo da roupa.
Isso cria, de forma inevitável, o ímpeto para que esta isonomia, que já se apresentava no mundo do trabalho, aparecesse também no usufruto de direitos que, naturalmente, não seriam concedidos às mulheres sem luta — dada a esmagadora tradição ideológica acumulada. Assim como para o proletário essa luta não é possível de forma individual, para a mulher trabalhadora vale a mesma lógica. Mesmo os direitos no campo da democracia burguesa só foram conquistados através da luta organizada, como no caso do sufrágio feminino. Será da mesma forma, com as mesmas armas, que as mulheres proletárias conquistarão suas outras demandas — com luta consciente, disciplinada e organizada.
Não obstante, para desafiar os limites dos direitos burgueses que, como visto anteriormente, não contemplam todas as mulheres, cabe à mulher proletária somar forças e ligar suas pautas a todos os filhos de sua classe — sejam homens ou mulheres — , guiados pela única ideologia capaz de tornar essa tarefa possível, o marxismo — o farol que aparece como devir teórico da emancipação da mulher.
Isto posto, entendemos que se o objetivo da mulher trabalhadora é sua emancipação total de milênios de opressão, que surge com o advento da propriedade privada e se intensifica no capitalismo, a sua emancipação só é possível através da superação destes entraves fundantes e fundamentais, ou seja, do capitalismo e consequentemente da sociedade de classes marcada pela opressão de um por outro.
Como mostrado, o feminismo — em qualquer de suas vertentes — não fornece os meios para essa derradeira emancipação, logo, não serve às demandas da mulher trabalhadora.
Sendo assim, finalizamos esse documento com um convite à luta para todas que reconhecem essa tarefa imposta às mulheres proletárias — em organizações democráticas ou revolucionárias: tomemos a metade do céu! Esse é o primoroso papel que a história nos reservou como filhas de nossa classe.